Do processo que mantém o Universo em harmonia, dentro de uma ordem perfeita, são gerados três diferentes estados ou forças primordiais da evolução, denominados trigunas (também chamados de propriedades da Natureza ou Prakriti 1 ): Sattva, Rajas e Tamas.
Tudo no Universo, cada estado da matéria ou da mente, todas as substâncias orgânicas e inorgânicas como também todos os pensamentos e ações, são formados e caracterizados por diferentes combinações dos três gunas. 1,2,3,4
Tamas está relacionado com a inércia; rajascom atividade, ação, e sativa com harmonia, clareza. 1,3
No plano físico, e sob a ação primariamente de Rajas, formam-se os três humores biológicos, ou doshas – Vata, Pitta e Kapha –, que correspondem a determinada predominância dos cinco elementos em cada célula. 2,3
De modo geral, as nossas mentes, sede das nossas perceções, motivações e ações, são governadas por gunas 1,2,3,4,5 e a fisiologia dos corpos por doshas.1
Estas forças estão interligadas (os doshas também têm uma esfera mental) e podem influenciar-se mutuamente, sendo necessários ajustes contínuos. 1
No sistema médico Ayurveda, os trigunas providenciam a base para distinções no temperamento humano e diferenças individuais nas disposições psicológicas e emocionais. 3,4,6
Gunas e ações estão intimamente ligados, pois a energia potencial dos atributos eventualmente torna-se ação ou energia cinética. 4 Assim, estas três energias mentais subtis são responsáveis por padrões de comportamento, pela forma como percebemos e respondemos aos estímulos externos. 4,5
Sattva, Rajas e Tamas
Sattva expressa essência 4 , é a qualidade do amor, da harmonia, do entendimento, da pureza, da bondade e da virtude. 3,4 Promove sabedoria e inteligência, perceção e clareza, paz, alegria e contentamento. 3,5 “Possibilita o despertar espiritual e o desenvolvimento da alma, bem como o despertar dos cinco sentidos que nos permitem vivenciar o mundo físico”. 3 “Sattva produz a paz interior por meio da qual podemos perceber a verdade. A saúde da mente e do corpo é mantida pela vida sátvica.” 3
Rajas é a qualidade da energia, da ação, da turbulência, mudança, que ativa todo o movimento, de ideias ou de instruções para o corpo. Na mente, Rajas provoca pensamento e emoção e é responsável pela inspiração, extroversão, sensualidade e
criatividade, mas em excesso pode causar inquietação, paixão, agressividade e ambição excessiva. 3,4,5 Uma pessoa com mente rajásica em geral é irritadiça, passional, agitada e dominadora. 5 “Acredita-se que dê origem à ação automotivada que conduz à dor e ao sofrimento, com a tendência de procurar novos estímulos, buscando a realização no mundo exterior. No estado rajásico, podemos dissipar a nossa energia por meio de um excesso de atividade, e tão logo ficamos cansados e deprimidos; Tamas assume o controle.” 3,
Tamas é a qualidade da estabilidade, do embotamento e da inércia que causa sono, decaimento, peso, degeneração e morte. 3,4 Um excesso de Tamas na mente pode obstruir o movimento, causando letargia, apego, irracionalidade, rigidez, teimosia, confusão, depressão, resistência à mudança e ilusão. 3,5 Podemo-nos sentir obtusos e sonolentos, com pouca motivação; e/ou ter dificuldade em ver as coisas com clareza e ficar cheios de dúvidas, incapazes de perceber o nosso verdadeiro eu interior. 3,4
O equilíbrio dos gunas
Estas três energias coexistem dentro de nós e devemos reconhecê-las para sermos capazes de preservar o seu equilíbrio. Os humanos passam de momentos sátvicos para momentos tamásicos e rajásicos. 1,2 Para vivermos de maneira harmoniosa, deve-se ter Sattva predominante, com pitadas de Rajas e Tamas que tragam movimento e descanso na medida certa. 1,3
Quando equilibrados, por meio de uma alimentação sátvica saudável e de um estilo de vida harmonioso, 3 os gunas produzem a perceção da verdade, clareza e paz mental, 2 aquietando as flutuações de humor e cultivando uma mente mais pura, alegre e desperta. 3 Quando em desarmonia, isto é, quando Rajas ou Tamas são excessivos, a nossa perceção fica bloqueada, distorcida, criando ignorância (Tamas), e desejo, ilusão e expectativa (Rajas), 2 podendo-nos predispor ao desequilíbrio e à doença. 2,3 Importa referir que, em relação aos doshas, que governam o corpo, Vata está associada com Rajas, Pitta com Sattva e Kapha com Tamas. 1 No entanto, essas associações não são absolutas. Vata e Kapha podem ser Sattva, Pitta pode ser Rajas, etc. 1 “A diferença entre gunas e doshas consiste no facto de mover de um estado para outro no plano dóshico não implica crescimento espiritual, enquanto mover de Tamas através de Rajas para Sattva leva ao crescimento espiritual.” 1 “Deve haver um esforço progressivo e gradual para transformar Tamas em Rajas e Rajas em Sattva”, sendo que “existem vários degraus nesta evolução.” 2
Relação doshas e trigunas.
A associação dos gunas e doshas tem implicações no nível psicossomático, significando que um desequilíbrio dos gunas pode deixar os doshas fora de equilíbrio e vice-versa. Esta noção é significante também para o controlo da doença. 1
Se um indivíduo predominantemente Vata estiver num estado predominantemente sátvico, tendencialmente é “enérgico “e tem “boa capacidade para mudanças positivas” 2 ; mas, se estiver num estado rajásico, torna-se “indeciso, não confiável, ansioso, nervoso” 2 ; se tamásico, torna-se temeroso, desonesto, depressivo, com tendência ao vício de drogas. 2,6
Num estado sátvico, um indivíduo com predominância de Pitta é “inteligente, amigável, corajoso” 2 ; num estado rajásico, pode tornar-se “ambicioso, agressivo, dominador” 2 ; se tamásico, potencialmente “odioso, destruidor, psicopata”. 2 Se Kapha for o dosha predominante numa pessoa, ela pode ser “clara, pacífica, leal” (estado sátvico) 2 , “gananciosa, apegada” (estado rajásico), ou “densa, letárgica” (estado tamásico). 2
Alimentação
Os alimentos ingeridos influenciam o corpo e a mente produzindo efeitos mais sátvicos, rajásicos ou tamásicos, consoante a sua natureza. “Quando se aumenta, através da alimentação, a quantidade de matéria sátvica, a nossa mente reage e interpreta o mundo de maneira mais sátvica, sábia e iluminada.” 2 Alguns alimentos sátvicos são: “fruta fresca, cereais e legumes, tâmaras, nozes e sementes, leite fresco, ghee e mel, gengibre e cálamo, óleo de sésamo, cardamomo, canela, funcho”. 2
Se nos alimentamos de alimentos rajásicos, como proteína animal, cebola e alho, pimentas, café, bebidas alcoólicas, “a mente fica mais egocêntrica e com mais ímpeto e agressividade” 2 . Se ingerimos alimentos tamásicos (como enlatados e processados de carne, principalmente de porco, açúcar refinado), “a nossa reação e interpretação do mundo torna-se mais ignorante e densa”. 2
Outro fator importante é o ar que se respira. “O ar das grandes cidades, poluído, barulhentoe tóxico, aumenta Tamas e Rajas na mente. Em oposição, temos Sattva presente na natureza, onde o ar é rico em prana que induz à calma.” 2
O papel do Ayurveda
A Medicina Ayurveda procura restabelecer e promover o equilíbrio do corpo e da mente,com práticas sátvicas, recorrendo ao Yoga (técnicas respiratórias e ásanas) e meditação, dieta vegetariana, ervas medicinais ou técnicas de manipulação corporal, proporcionando um estilo de vida mais equilibrada mental e fisicamente, mais próximo da natureza e dos seus ciclos. 2,4,5,6
“Se há excesso de Rajas e consequentemente um grande consumo de energia e agitação, administra-se terapias tamásicas para descansar e acalmar.” 2 Quando se está num estado tamásico acentuado, deve aumentar-se Rajas (atividade e estímulo), 2,3 pois um dos princípios de tratamento Ayurveda afirma que Oposto cura Oposto. 6
Em suma, deve-se procurar que o paciente adquira hábitos mais saudáveis, quer alimentares, quer de pensamento, através de rotinas diárias que promovam o equilíbrio dos doshas e dos gunas.
* Por Ana João Fernandes, formanda do curso técnico de Medicina Ayurveda 2022/2023, no centro AkiSintaSaúde, em Sintra. Novembro de 2022.
Referências bibliográficas
1. “200 hours Yoga Teacher Training Course Manual”. Fusion Yoga India, 2018. pp 27-28.
2. Ana Cristina Costa, Eduardo Cunha, “Os trigunas – processo de Sattva, Rajas e Tamas”.
Associação Portuguesa de Medicina Ayurveda, 2020: URL.https://amayur.pt/2020/04/03/os-trigunas-processo-de-sattva-rajas-e-tamas/
3. Anne McIntyre. A Bíblia do Ayurveda: o guia definitivo para a cura ayurvédica, 2012.
Trad. Cláudia Gerpe Duarte, Eduardo Gerpe Duarte. Editora Pensamento, São Paulo, 2016.
4. Vasant Lad, Ayurveda, the Science of Self-Healing. Motilal Banarsidass Publishers,
Private Limited, 6.ª edição: Delhi, 2017.
5. Aderson Moreira da Rocha, “Ayurveda e a Mente”. URL:https://ayurveda.com.br/ayurveda-e-a-mente/
6. Nídia Avelino, “Depressão, Ansiedade e Ayurveda”. Associação Portuguesa de Ayurveda, 2021. URL: https://amayur.pt/2021/02/12/depressao-ansiedade-e-ayurveda/